Aqui em casa existe um não-cômodo, que aloja objetos, livros e outras papeladas que se mostram inúteis (até o dia em que são jogados fora). Confinados, estes objetos aguardam a decisão do júri - no caso, minha mãe - sobre o seu triste destino. No não-cômodo ainda existe uma velha penteadeira, que é exemplo supremo do que já foi exposto aqui: querida demais para ser jogada fora; feia demais para decorar qualquer quarto.
Desde a última reforma da casa, quando um dos espelhos funcionais acabou sendo retirado, passamos a utilizar o espelho da velha penteadeira para escovarmos nossos lindos cabelos - acabo de tirar uma nota 10 pela breguice dessa frase. Pois bem. Eu estava acalmando o meu cabelo - que de tão rebelde, um dia irá fazer uma rebelião e deixará a minha cabeça em chamas - quando percebi, entre uma boneca velha e a maleta da câmera filmadora do meu pai - que registrou os mais alucinantes casamentos da nossa família e agregados - uma bola enrolada em um saco de lixo. Fiquei bastante curioso porque, pela transparência do plástico velho, aquela parecia ser uma bola de basquete que havíamos comprado há quase dez anos e eu imaginava que ela não existisse mais - afinal eu e meus irmãos éramos uma máquina de destruição. Desenrolei o saco plástico e confirmei a suspeita. Fui tomado por uma felicidade e um sentimento de fuga imenso. Sem hesitar, procurei uma bomba de ar para inflar a velha bola, que estava quase vazia e bastante ressecada. Terminei o serviço e fui até a varanda, não só para testar a velha bola, mas para ver como eu estava fisicamente. Obviamente, a bola estava péssima. E eu também. Quase não quicava, despedaçava mais e mais, voltava a esvaziar - claro, a bola. E eu também.
Depois de algumas passadas, vi que ela não resistiria e que um péssimo atleta com uma péssima bola constituem um péssimo passatempo. Então não havia outra saída: comecei a me lembrar dos tempos em que éramos bons, ela e eu, cada um executando a sua função. E também comecei a perceber como o passado é importante. De pensar que quando eu brincava, aquela bola parecia durar para sempre. E agora ela estava ali, sem função, sem graça, sem valor. E pode parecer bobo, mas costumam dizer que a gente perde o medo de ser ridículo quando começa a ficar maduro: eu tive medo de ficar tão inútil quanto ela. Talvez tenha sido este o motivo que fez com que eu trouxesse a velha bola para o meu presente. Ela veio como um aviso que dizia 'cuidado'. Mas que também implorava 'desista de mim, olhe para frente, eu não sirvo mais'. E depois do que vivi hoje, eu vejo que o passado está intimamente ligado à função de avisar. Mas sinto que ele se despedaça e não pode me acompanhar para sempre. Acho que é por isso que a gente vai perdendo a memória. Eu poderia pedir milhares de vezes para você não se esquecer de mim, mas não tenho este poder.
Guardei a velha bola no mesmo cantinho em que a encontrei. Agora, cabe ao júri decidir se ela vai ou não para o lixo. E eu vejo que o maior presente que se pode receber é a honra de ser inesquecível para alguém. E quem iria imaginar que o desimportante não-cômodo é a memória da minha casa...
Desde a última reforma da casa, quando um dos espelhos funcionais acabou sendo retirado, passamos a utilizar o espelho da velha penteadeira para escovarmos nossos lindos cabelos - acabo de tirar uma nota 10 pela breguice dessa frase. Pois bem. Eu estava acalmando o meu cabelo - que de tão rebelde, um dia irá fazer uma rebelião e deixará a minha cabeça em chamas - quando percebi, entre uma boneca velha e a maleta da câmera filmadora do meu pai - que registrou os mais alucinantes casamentos da nossa família e agregados - uma bola enrolada em um saco de lixo. Fiquei bastante curioso porque, pela transparência do plástico velho, aquela parecia ser uma bola de basquete que havíamos comprado há quase dez anos e eu imaginava que ela não existisse mais - afinal eu e meus irmãos éramos uma máquina de destruição. Desenrolei o saco plástico e confirmei a suspeita. Fui tomado por uma felicidade e um sentimento de fuga imenso. Sem hesitar, procurei uma bomba de ar para inflar a velha bola, que estava quase vazia e bastante ressecada. Terminei o serviço e fui até a varanda, não só para testar a velha bola, mas para ver como eu estava fisicamente. Obviamente, a bola estava péssima. E eu também. Quase não quicava, despedaçava mais e mais, voltava a esvaziar - claro, a bola. E eu também.
Depois de algumas passadas, vi que ela não resistiria e que um péssimo atleta com uma péssima bola constituem um péssimo passatempo. Então não havia outra saída: comecei a me lembrar dos tempos em que éramos bons, ela e eu, cada um executando a sua função. E também comecei a perceber como o passado é importante. De pensar que quando eu brincava, aquela bola parecia durar para sempre. E agora ela estava ali, sem função, sem graça, sem valor. E pode parecer bobo, mas costumam dizer que a gente perde o medo de ser ridículo quando começa a ficar maduro: eu tive medo de ficar tão inútil quanto ela. Talvez tenha sido este o motivo que fez com que eu trouxesse a velha bola para o meu presente. Ela veio como um aviso que dizia 'cuidado'. Mas que também implorava 'desista de mim, olhe para frente, eu não sirvo mais'. E depois do que vivi hoje, eu vejo que o passado está intimamente ligado à função de avisar. Mas sinto que ele se despedaça e não pode me acompanhar para sempre. Acho que é por isso que a gente vai perdendo a memória. Eu poderia pedir milhares de vezes para você não se esquecer de mim, mas não tenho este poder.
Guardei a velha bola no mesmo cantinho em que a encontrei. Agora, cabe ao júri decidir se ela vai ou não para o lixo. E eu vejo que o maior presente que se pode receber é a honra de ser inesquecível para alguém. E quem iria imaginar que o desimportante não-cômodo é a memória da minha casa...
7 comentários:
Muito lindo. É bom guardar os trem pra ter essas recordações mesmo.
Pelo menos uma vez por ano eu faço uma faxina assim. Ficam 3 pilhas: as coisas que eu DEFINITIVAMENTE vou jogar fora, as que eu DEFINITIVAMENTE vou guardar de novo e as que eu não sei.
Ataca minha rinite sempre, pela quantidade de poeira que sai, mas não tem UMA vez que eu não tenha acessos de riso e de choro no processo.
Otimo texto... nossa, me lembrei das inumeras bolas de futebol, de basquete, de volei que tive... patins, pranchas... caramba...
Mas o juri daqui de casa faz com que desfaçamos de coisas velhas sempre, entao, eles estão apenas na minha memória hj e obrigado pelo seu texto ter me feito relembrar deles que um dia foram inseparáveis para mim :)
Chorei :´(
A medida que o mundo evolui..os mais faceis chegam..ignoramos os chamados mao de obra...mas se tornam inesqueciveis com a gente ne...
abraçao
Oi,
Desculpe a invasão. Através do blog do Caio vim conehcer seu blog. Cara muito bom, vc escreve muito bem. Parabéns. Sempre é bom conhecer blogs assim com conteúdo e qualidade.
Abraço, Jay
Oie!
Uall thi!há muito nao via algo tao simples e bonito escrito pelos cantos dessa minha amada internet!Mesmo pq nao busquei le-los!
^^
Amei!
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