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* Presente de Natal de Ana para este jovem solitário! Gosto muito, do selo e da amiga.
... na realidade paralela, em que não havia esposa nem filhos nem formalidades, você me completava. Não por você ser importante. Talvez fosse exatamente o contrário. A sua insignificância me tornava supremo. Ver você ajoelhada aos meus pés implorando alguns tostões despertava em mim a verdadeira grandeza de ser um homem. Mais do que isso, despertava o meu prazer em ser um homem poderoso. Você era uma das minhas posses. Abandono os seus beijos e o seu corpo porque há tantas outras como você no mercado e também porque a vida de pai de família, executivo e jogador de golf me chama. E deste lado, felizmente, não há espaço para as mulheres da sua classe...
... há tantas outras mulheres como eu rondando por ai, de fato. Mas eu sei que a demanda de vagabundas não atende a todos os velhos vadios que jogam golf no final de semana. Obrigada por ter deixado as minhas contas pagas. Esquecer um homem sujo como você é tão fácil... Talvez não me lembre do seu nome ao postar essa carta. E o "senhor de respeito, casado, com filhos", esquecerá fácil as curvas do meu corpo? ...
amantes são para sempre:
... te vejo mais tarde ...
Ao contrário dela, eu havia mudado bastante. Tornei-me um pouco mais cético, bem mais cínico, muito mais desconfiado e, confesso, tive mais decepções do que imaginava que viria a ter. Aquela pessoa e eu, há tantos anos, tínhamos exatamente os mesmos sonhos. A maioria deles, hoje eu sei, era irrealizável por natureza. Lembro-me, por exemplo, que eu queria aprender a ler pensamentos. Queria voar por minha própria dinâmica, como se tivesse asas. E acreditava, com absoluta convicção, que seria capaz de fazer essas e muitas coisas impossíveis. Porque eu não apenas tinha o tempo a meu favor, mas tinha principalmente aquela saudável falta de medo, típica da juventude, que nos faz acreditar que o mundo em essência é simples e que os adultos vivem engajados em uma monumental campanha para torná-lo cada vez mais complicado.
Trabalhar, por exemplo. O que poderia ser mais fácil do que entrar em uma empresa, fazer novas amizades, ter grandes idéias, ser reconhecido e promovido, viajar pelo mundo inteiro e, ainda por cima, ganhar muito dinheiro? E o melhor de tudo era que, com o talento que eu acreditava ter, todas essas coisas aconteceriam em questão de dois ou três anos, no máximo. Hoje eu sei que não é bem assim, mas hoje é hoje. É por isso que é bom encontrar alguém que nos transporte de volta para ontem, quando as palavras "sonhos" e "planos" eram sinônimos perfeitos. É em momentos assim que a gente pára e faz um balanço da vida, para perceber que não perdemos oportunidades; o que perdemos foi boa parte da confiança que tínhamos em nós mesmos. E aquela pessoa estava ali, bem na minha frente, para comprovar isso.
Então, fechei o álbum de fotografias. A pessoa que eu havia encontrado após tanto tempo era eu mesmo, num retrato quase esquecido. A foto me lembrou que, um dia, eu já fui alguém mais corajoso e bem mais confiante do que sou hoje. Aquela pessoa que fui enxergava o mundo como uma ampla avenida, em que as luzes de todos os faróis estavam sempre verdes. E a pessoa que eu me tornei passou a se concentrar mais nas ruas sem saída. Não deixa de ser irônico pensar que estudamos tanto e aprendemos tanta coisa apenas para, um belo dia, perceber que nossas dificuldades presentes não são o resultado do muito que conseguimos nos tornar: elas são a conseqüência do pouco que deixamos de ser.
Revista Você S/A Edição 78 - Janeiro de 2005
"amar é reconhecer-se incompleto"
Guimarães Rosa
“ a moça mal vestida me mostrou três coisas:
A inspiração de hoje veio justamente da fila do mercado. Às 10 horas da noite. Sábado. Sai com um amigo, jantei, fiz trabalho (não necessariamente nessa ordem) e lembrei que caso não fosse ao mercado não teria nada em casa para o domingo. Fiz uma compra pequena, porque domingo eu acordo depois do almoço justamente para não precisar prepará-lo.
Na minha frente na fila do caixa havia uma moça vestida loucamente. Assim: mulambenta. Não sei nem soletrar São Paulo Fashion Week já que sou um zero à esquerda quando o assunto é moda. Mas a moça era uma mistura de hippie com cigano com galo de briga com alguém que acabou de acordar.
Quando ela colocou a suas compras na esteira do caixa eu percebi que havia muitos legumes, frango e um pacote de camisinhas. Havia frango e um pacote de camisinhas. Havia um pacote de camisinhas! E ainda por cima estava escrito “Jontex, embalagem econômica”. Eu falei pra mim mesmo “Thiago, faz cara de que não viu a camisinha”. Mas parece que quando você faz cara de que não viu a camisinha você fica com cara de que viu a camisinha.
Enquanto eu flertava a camisinha, a moça mal vestida tirou da bolsa a sua carteira (também mal vestida) e deixou cair duas moedas. Uma ela recolheu. A outra eu peguei e devolvi a ela, que logo disse:
- Obrigada.
E o que esta palavra de oito letras tem a ver com o resto da história? Esta palavra foi pronunciada de uma forma calma e doce que até parecia dublada. Só que mais do que isso, essa palavra me desconsertou. Imagine você que a moça mal vestida me convenceu com uma só palavra que ela era boa, educada e instruída. Coisa que muita gente, com discursos de extensões políticas não consegue fazer.
O pior (ou melhor), querido leitor, é que mostrando ser educada e livre, a moça mal vestida fez com que eu parasse de olhar para ela e começasse a olhar para mim. “Thiago, você que se diz aberto para novas idéias, que coloca o moralismo na lixeira e o orgulho no ralo, que diz sempre pensar duas vezes nos assuntos, compreensível e receptivo à diversidade de cultura e pensamento... e veja só, justo você com esse pensamento bobo e atrasado sobre sexo!”
Pois é, justo eu. Aquilo pra mim era uma cena de filme: eu com cara de camisinha envergonhada, a moça mal vestida, o frango, os legumes, a própria camisinha e uma trilha sonora dos anos 70. Isso! Tocava uma música muito boa e de repente eu voltava pouco a pouco a ser eu mesmo. Sim, eu sou aquele velho condenado com as novas idéias de liberdade.
E pensei também em como o mundo seria melhor se todos fossem iguais à moça mal vestida. Porque a moça mal vestida compra camisinha e não se importa se uma cambada de tontos fica olhando. A moça mal vestida tem sempre os pés no chão, mas sabe que pode voar. A moça mal vestida é coisa rara e preciosa, diferente da leva de vadias que escondem a falta de pensamento com roupas da moda e jóias caríssimas.
Por que eu escrevi esse texto? Primeiro, é um pedido de desculpas à moça mal vestida pelo meu modo cego de ver as coisas. Segundo, para dizer que a moça mal vestida é uma mulher linda e inteligente, um exemplo a ser seguido, Terceiro, pra dizer que pra mudar basta estar vivo. Eu estou falando de mudança de opinião, de postura, de pensamento e atitude. Ao viver essa situação, penso que eu mudei. Você pode fazer o mesmo às vezes?
E pra finalizar, eu escrevo esse texto pedindo para que você se proteja. Em todos os sentidos.
Proteja-se.
Liberte-se.
Para verdadeiras descobertas, não peça novas paisagens, peça novos olhos.
Então, pra nós, um hoje mais feliz.
Mil beijos.
E com alguns quilos de moralismo a menos, sigo vivendo.