domingo, 26 de abril de 2009

Sombras na Parede - Capítulo 3

- Jacinta, Vanessa e Túlio -

Enquanto Túlio não chega, Vanessa está sentada na cama da bibliotecária. Jacinta revira uma caixa a procura do livro de Lispector. O silêncio e a poeira fazem Vanessa comentar:

- Você passa muito tempo em casa?
- Tempo suficiente para ler e dormir.
- Você recebe muitas visitas?
- Não.

Vanessa esperou que Jacinta continuasse o diálogo com uma explicação. Mas o silêncio retornou. Vanessa reluta:

- Você já foi casada.
- Não.

Sabendo que o silêncio iria persistir, emendou rapidamente.

- Mas tem algum relacionamento com alguém.

Jacinta parou de procurar o livro para pensar em uma resposta. Isso deixou Vanessa constrangida. Sentiu que falara demais. A bibliotecária, com um riso no canto dos lábios, disse:

- Digamos que eu sou... moderna. Eu tenho algo que é menos que um namoro e mais do que uma aventura que deveria durar um dia. Isso tem nome?
- Tem sim. Indecisão.

Jacinta riu da leveza da resposta de Vanessa.

- Eu também sou moderna.
- É mesmo? - disse a bibliotecária - e por que diz isso?
- Eu já fiz muitas coisas que, olhando pra mim, você jura que eu não teria coragem de fazer.
- Isso é ser moderna?
- Claro!
- Olhando pra você, eu juro que você nunca teria coragem de fazer amor com uma mulher mais velha que você.

Vanessa está prestes a provar para a bibliotecária que é uma jovem moderna.

(...)

Alguns minutos após deixar o bar, Túlio está em frente à casa de Jacinta. O portão estava aberto e, ao testar desesperançoso se a porta também estava, viu que a sorte hoje estava ao seu lado.
Túlio está agora na sala e ouve o barulho do chuveiro ligado.

(...)

Ver uma mulher como Jacinta nua foi uma experiência um tanto impactante para Vanessa. Mas logo se tornou natural. Natural era mesmo a palavra. Alguns engordam, alguns emagrecem, alguns continuam vaidosos, outros não. Mas todos envelhecem. Jacinta, que não era magra nem vaidosa, já não era tão desconhecida aos toques de Vanessa. Após algumas carícias e abraços, elas agora dividem o pequeno espaço do box saturado de vapor e descobertas.

(...)

Túlio viu a porta do banheiro entreaberta e decidiu entrar. Corria o risco de ver Jacinta nua. Perigo para os olhos de qualquer um. Mas foi corajoso. Ao terminar de empurrar a porta, viu a imagem difusa de duas mulheres dividindo um pequeno espaço recoberto por uma nuvem de confissões. "Esses olhos ruins", pensou. Ele abriria a porta do box e falaria tudo o que era preciso para Jacinta. Eles estavam doentes.

(...)

Vanessa estava com os olhos fechados quando sentiu um vento frio passeando pelas costas descobertas. Não entendeu como Jacinta poderia ter aberto o box, se sentia as duas mãos da bibliotecária em pescoço. Assustada, abriu os olhos, virou o rosto e se deparou com a face confusa Túlio.

(...)

Jacinta não entendeu o motivo da presença do jardineiro em sua casa, mas a nudez revelada e a presença de outra mulher deixou a bibliotecária de respostas curtas sem saber o que dizer.

(...)

Túlio não acreditava em seus olhos. Mas deveria ser crédulo. Míope sim. Cego não. E aquela jovem... possuía um rosto conhecido. Tantos pensamentos ausentes deixaram o jardineiro impedido do poder da fala.

(...)

Vanessa não se sentia inibida. Fixou a ideia de que aquilo era natural. Mas o silêncio sempre deixava a jovem desconfortável. Entre vapores e sentimentos voláteis, ela disse uma só palavra ao jardineiro desprotegido:

- Entra...

E ele entrou. Fechou a porta do box. Na parede, três sombras indistintas tornaram-se uma só quando os três se abraçaram.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Sombras na Parede - Capítulo 2

- Jacinta e Vanessa -

Vanessa estava namorando os livros de Lispector, quando a bibliotecária se aproximou:
- Você tem quantos anos?
A bibliotecária era amável nas tardes de sexta-feira.
- Eu?
Vanessa estava sozinha, mas se assustou com o semblante amigo de Jacinta.

- Quando eu tinha a sua idade - continuou Jacinta, sem ser respondida - eu também adorava os livros dela. Hoje já não gosto tanto. Estranho. Jurava que seria pra sempre. Mas faz bem lê-los. Você se descobre humano, ignora filosofias estúpidas e clichês. Você tem a chance de se revelar medíocre e achar tudo isso lindo.
- Bom, eu juro que vou amá-los pra sempre - disse Vanessa, sem concordar totalmente com as palavras da bibliotecária.
- Não vai.
Vanessa sorriu descontente e se sentiu invadida.
- Bom, já vou indo. Não encontrei o livro que eu queria.
- Qual livro?
- Cartas Perto do Coração.
- Eu tenho.
- Jura?
- Vamos para minha casa buscá-lo. Termino tudo aqui em dez minutos, me espere.

Vanessa queria negar instantaneamente o convite, mas não teve espaço para fazê-lo. Passados os dez minutos, elas já estavam no velho carro da bibliotecária.
- Quantos anos você tem?
- Dezoito.
A bibliotecária respirou aliviada. Acabara de ouvir aquilo que desejava.
A estudante estava ofegante. Acabara de mentir a sua idade.

(...)

- Túlio e Roberto -

Ao mesmo tempo em que Vanessa e Jacinta percorrem avenidas rumo a uma aventura desconhecida, Túlio e Roberto tomam uma cerveja num bar perto da casa da bibliotecária.

- Sabe Túlio, se não fosse por você, eu não conseguiria esse emprego. Ser professor está pra lá de complicado. Ainda bem que você me alertou sobre esta vaga! Rapaz, eu estou muito feliz. A bebida hoje é por minha conta.
- Que isso Roberto! Você pode contar comigo sempre. Não deu trabalho nenhum te deixar por dentro daquela vaga.
- E você também sempre pode contar comigo, mesmo que seja só pra desabafar, contar os problemas...
Os olhos de Túlio indicaram que as palavras de Roberto haviam sido certeiras.
- E eu posso contar com você agora? Exatamente agora, eu digo.

Roberto estava sendo sincero com o amigo, mas não imaginava que as coisas seriam assim tão rápidas.
- Claro que sim, disse Roberto, firmando olhares com o amigo.
- Sabe, eu fico um pouco constrangido de dizer, mas agora já é certeza, logo logo você saberia mesmo...
- O que é Tulião? Virou palmeirense?
Túlio não sorriu, preocupando Roberto.
- Eu sou soropositivo.
Sentiu o sangue de Roberto se concentrar em sua face. Um incômodo silêncio se fez. Túlio continou:
- O problema é a Jacinta...
- Você ainda não a avisou?
- Não é isso Roberto. Eu acho que ela me transmitiu isso...
- Túlio, acho melhor você pegar o seu carro e ir para casa da Jacinta. Vocês precisam conversar muito.

Na despedida, Roberto disse palavras de força para o amigo. Mas não foi sincero. Túlio pensou em abraçá-lo, mas nem o aperto de mão foi bem correspondido. Roberto parecia ter medo de alguma coisa... de ser contaminado, talvez. Túlio apenas lamentou pela ignorância do amigo.

Túlio está dirigindo rumo à casa de Jacinta.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Sombras na Parede - Capítulo 1

- Jacinta e Miriam -

Parada entre duas prateleiras de livros, interrompia a passagem dos outros alunos. A bibliotecária se aproximou e viu que a aluna não passava bem.
- O que você tem?
- Não sei... estou meio enjoada e...
A aluna foi repentinamente interrompida:
- Você está grávida. Idiota.
A bibliotecária não era amável durante as manhãs de segunda.

(...)

- Miriam e Vanessa -

- Eu adoro essa blusa, preciso ver se combina com a saia.

Disse isso e foi logo se despindo. Gostava de fazer isso na frente de Vanessa, que não era magra. Mostrava o corpo e ficava atenta aos olhares discretos da amiga. Mas que naquele dia não estavam tão discretos. Na verdade, estava ficando desconfortável. Resolveu perguntar:

- O que houve? Parece até que viu uma estria em mim!
- É que seu corpo... você está bem? Parece um pouco inchada. Por isso você disse que iria procurar um médico ontem à tarde?
- Bom Van... não iria falar para ninguém, mas estou preocupada. Eu abortei. Achava que ficaria bem, mas sinto algumas dores. O médico que fez o procedimento disse que isso aconteceria mesmo, mas não pensava que seria tão forte. Sei que posso confiar em você, mas aposto que você também não sabe o que me dizer...

Vanessa ficou pensativa e vazia ao mesmo tempo. Descartava pensamentos. Pensou no aborto, no liquidificador, na relação sexual da amiga, no que ela sentira ao ser penetrada, em todas as suas curiosidades. Perguntaria sobre isso depois.

- Você fez a coisa certa.
- O quê? Van, você não pensa isso. Nem eu mesmo sei o que fiz.
- Falando sério. Você não tinha escolha.
- Será? Você faria a mesma coisa?
- Se eu fosse tão estúpida quanto você e aquele seu namorado imbecil, eu faria. Eu nem sei porque essa porra de aborto é proibida. Imagina se você tivesse esse filho. Você não consegue cuidar nem de um peixe de aquário. O aborto é a melhor escolha pra garotas sem responsabilidades e medíocres. Eu apóio totalmente. Você não está preparada para ser gente, não pode dar atenção a outro ser humano. E não sabe fazer escolhas. Vide seu namorado. Ele não te ajudaria em nada, até complicaria ainda mais as coisas. E outra, você usaria essa gravidez como desculpa para não cumprir os seus deveres. Você sempre faz isso. Inventa doenças, falsifica atestados, suborna pessoas. Definitivamente, eu não queria ter você como mãe. Parabéns amiga, você fez a coisa certa. Você finalmente assumiu quem você é.

Sentia o peito apertar, afinal Miriam era sua amiga. Tinha inúmeros defeitos, mas sabia ser companheira nos momentos certos. No entanto, não podia concordar com estas irresponsabilidades, que já estavam sendo constantes. O silêncio havia sido quebrado. Estava pensando em ir embora, mas as palavras de Miriam foram precoces:

- Van, me deixa sozinha.

Na verdade, ela tentaria conversar mais com Vanessa, não fosse pelo mal-estar que retornara violentamente e pelo sangue fervente que sentira escorrer inundando a saia nova. Antes de sair, Vanessa olhou para os olhos da amiga. Ficaria tudo bem. Era rotina. Sentiu o cheiro de sangue doente e pensou em perguntar de onde ele vinha. Não perguntou porque já sabia a resposta. Imaginou Miriam dizendo "É do coração, amiga".

sábado, 4 de abril de 2009

Sombras na Parede - Capítulo Zero

Escrevo esta novela para aqueles que já estão com os olhos descobertos e que não se assustam com a verdade. Somos pessoas reais. Nós, deste lado da história. Eles, personagens tocáveis que podem estar mais perto do que se imagina. Esta novela ainda tem a função de criarmos romances entre pessoas (neutras ou não) do nosso dia a dia. É pensar que elas ocupam lugar no espaço, matéria viva. É pensar que elas também são dotadas de sentimentos e sexo. São espíritos de carne e pecado. Use esta história como se fosse, além de palavras, mãos. Toque os personagens. Sinta os seios, os lábios, o desejo, a glande, a garganta, o grito. Seja ousado. Seja um deles. Faça amor, usurpe, empreste-lhes a sua face. Dêem vida. É a nossa chance de roubar o poder.
Falemos então deles, os que habitam o cenário imaginário. Ainda sem face, exponho a vocês detalhes dos nossos heróis.

1 - Rafael - 17 anos - estudante - atleta - nunca foi a um puteiro, mas pensa em ir qualquer dia desses, quando não estiver mais frio.

2 - Miriam - 17 anos - estudante - tecladista - não usa fotos próprias em sites de relacionamento devido às constantes censuras do pai, mas já tem um vídeo erótico de muito sucesso na internet. Namora com Rafael.

3 - Vanessa - 17 anos - estudante - cantora - adora estudar e é admirada por todos pela sua determinação. Sempre correta, é amiga e conselheira de Miriam.

4 - Jacinta - 48 anos - bibliotecária - com quase cem quilos e pouco mais de um metro e meio, Jacinta namora nos feriados prolongados com Túlio. Visita sites pornográficos e se masturbou há menos de uma semana pensando no aluno Rafael.

5 - Túlio - 52 anos - jardineiro - viúvo, namora com Jacinta. É um grande amigo de Roberto.

6 - Roberto - 30 anos - professor de História - atlético e muito atraente, arranca suspiros de todas as alunas. Foi transferido a pouco tempo para atual escola graças a ajuda de Túlio.

7 - Helô - 25 anos - professora de Português - mantém relações sexuais com Roberto, mas sempre finge orgasmo. É irmã de Rafael.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Eu, que não tenho luz própria

Sinto o abraço que um dia foi aconchego
Pra depois ser despedida.
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Porque o fim dói tanto?


Trancafiada no quarto
a sua existência era um segredo
A flor se fazia em cores
na rua sorrisos, beijos, laços
amores
Tudo isso ela não via
Do calor do lado de fora
a pele não mais sabia
O vazio no peito
a indiferença entre noite e dia
O passar do tempo
a sua voz o meu ouvido desconhecia
e o mundo não parava lá fora
e o mundo sem você não valia
de pensar que há tanta beleza por aqui
tanta música, tantos amigos, tanta poesia.
O que te separava da felicidade,
da luz, da alegria
era uma parede de quarto que você não
pode derrubar.
Abre a janela amor.

Para uma amiga.